A lenda de Lilith:
Na Bíblia, os principais arquétipos femininos são o de Eva, a mulher que trouxe o pecado para a humanidade; e o de Maria, a mulher que trouxe ao mundo aquele que salvaria todos os homens do pecado. Porém, há na mitologia semita, uma terceira mulher cuja trajetória está diretamente ligada à do destino da humanidade: Lilith, a primeira esposa de Adão, a serpente que enganou Eva, o demônio da luxúria.
Existem algumas versões diferentes da lenda de Lilith, na mais aceita pelos estudiosos do mito e com fundamentos na Talmud (um dos livros considerados como fonte da sabedoria rabínica), Lilith é criada por Deus da mesma forma como Adão, ou seja, moldada pelas mãos divinas, só que a partir de lodo e fezes. Os dois são o primeiro casal, responsáveis por cuidar do Éden. Só que com o tempo Lilith se rebela por não se conformar em estar em uma posição inferior a de seu marido, já que ambos foram criados a imagem e semelhança de Deus. A submissão é detectada inclusive sexualmente, onde Lilith exerce poder de sedução e entorpecimento orgástico em Adão e ele, por outro lado, se deita continuamente sobre ela, num sinal de domínio no coito e na relação, o que Lilith não aceita (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 11).
Em busca de igualdade, Lilith entra em conflito com seu marido, contesta sua posição de inferioridade, e contesta também o criador, tendo que escolher entre se submeter ou deixar o jardim. Ela escolhe a segunda opção e parte para um exílio no Mar Vermelho, reduto de demônios. Durante algum tempo Lilith se vê impelida por anjos a voltar ao jardim, porém escolhe viver como demônio e abandona de vez Adão (RODRIGUES, 2007: p. 07). Este, triste por perder sua mulher, adormece, e a partir de sua costela Deus cria Eva, uma mulher que saiu do homem, portanto dependente e submissa a ele, a que seria oficialmente a primeira esposa de Adão, a mãe da humanidade.
Após seu exilo no Mar Vermelho Lilith volta ao Jardim do Éden como um demônio, e na forma de uma serpente é responsável pela tentação de Eva, que levou toda a humanidade ao pecado. Com astúcia, Lilith confunde Eva e desperta nela o desejo de igualdade, não a igualdade com o homem, que a primeira mulher antes desejava, mas a igualdade com o próprio Deus (FONSECA, 2007).
Na Bíblia, não temos nenhuma referência à Lilith, e a serpente é identificada com o Diabo, mas no imaginário judaico, já associado às lendas mesopotâmicas, Lilith é o demônio da luxúria (NOGUEIRA, 2002: p. 17) – que tentava os jovens sexualmente á noite levando-os a sonhos eróticos e “poluição noturna”-, e mais tarde, com a maior sistematização das crenças de Israel, a lenda foi acoplada à idéia do Diabo e suas hostes. Por outro lado, o mito de Lilith, presente originalmente na cultura dos babilônicos e assírios, perdurou também na tradição oral dos hebreus e nos livros de sabedoria, considerados apócrifos pela cultura cristã. Além disso, a lenda tem sido retomada pelo estudo das religiões, religiões e mitologias comparadas, psicologia e pela astrologia e misticismo, onde Lilith é a lua negra, a face oculta lunar.
Desse modo, pretendemos analisar os três arquétipos femininos que aqui propomos: o de Eva, o de Maria, e o exposto acima, o de Lilith.
Figura 1: O pecado original e a expulsão do Paraíso. – Michelangelo, séc. XVI. (Capela Sistina)
Eva:
Eva é, segundo a Bíblia, a primeira esposa de Adão. De acordo com este livro sagrado, depois que todas as coisas já haviam sido criadas, Deus a fizera de uma costela do homem para ser a companheira deste, pois todos os outros animais tinham um par, menos o ser humano. Adão nomeou-lhe, como tinha feito com o resto da criação. (Gênesis, cap. I e II)
Ela é também a responsável pelo pecado original, pois sucumbiu aos apelos da serpente e comeu do fruto proibido por Deus, desobedecendo às ordens divinas. Além disso, convenceu Adão a também desobedecer a Deus e comer do fruto da “árvore do conhecimento do bem e do mal”, o que levou toda a raça humana à perdição.
Segundo o que expõe Jacques Le Goff, dentre as interpretações que podem ser feitas dos primeiros capítulos de Gênesis, temos a de que Eva foi uma criação imperfeita até ser nomeada por Adão, e a de que a existência dela, e da mulher, só acontece em razão das necessidades de Adão, ou seja, Deus só a criou quando percebeu que o homem estava só e precisava de uma companheira (LE GOFF, 2008: 121). Daí podemos colocar que Eva só poderia ter sua identidade e existência ligadas a de Adão.
São Tomás de Aquino, um dos maiores teóricos do catolicismo, viu no fato de Deus ter criado Eva a partir da costela de Adão um indício de igualdade entre homem e mulher, pois, segundo ele, se Eva fosse criada da cabeça seria uma indicação de superioridade, e se fosse criada do pé, uma indicação de inferioridade (LE GOFF, 2008: 122). Por outro lado, esse também pode ser um indicativo de profunda ligação e até mesmo dependência entre os dois, principalmente de Eva em relação a Adão, de quem foi gerada, o que transferido para o imaginário pode implicar na idéia de dependência das mulheres para com os homens.
Quando Eva foi tentada pela serpente a Bíblia não revela explicitamente se ela estava sozinha ou em companhia de Adão, porém a não interferência dele no diálogo entre ela e a serpente faz parecer que ambas estavam sozinhas. Eva é tentada a ser como Deus, conhecedora do bem e do mal, caso comesse do fruto da árvore do conhecimento, além disso, não enfrentaria a pena instituída por Deus para a desobediência, a morte. Após analisar o fruto, a mulher decide comê-lo e o oferece a seu marido, que também come. Imediatamente ambos percebem que estão nus e se escondem ao ouvir a voz de Deus (Gênesis, cap. III).
É importante notar que quando Deus pergunta sobre a desobediência, Adão culpa Eva e esta culpa a serpente. Os três são penalizados, a serpente – que segundo lendas tinha asas – rastejaria para sempre; o homem teria que trabalhar para se sustentar; a mulher e a serpente seriam inimigas; a mulher teria dores de parto e seria dominada pelo marido; e por fim a humanidade estava banida do Paraíso. Há ainda a menção do filho da mulher que esmagaria a cabeça da serpente, o que para alguns teólogos faz referência à Cristo e Satanás (Gênesis, cap. III).
Eva é então a culpada pelo pecado original, o que, no imaginário, se dissemina para todas as mulheres. É interessante que Eva, apesar de transgressora, fica ao lado de Adão para ouvir sua sentença, e a cumpri, carregando o estigma de pecado, impureza, fragilidade, ingenuidade e sofrimento remidor que se estende para as mulheres na sociedade cristã, como algo inerente a sua natureza. Lilith, por sua vez, escolhe viver sozinha e errante, e como mulher não recebe o castigo da maternidade, ou a maternidade como um castigo, no sentido das dores de parto e do sofrimento, como logo veremos com Maria.
Assim, além de culpada pela desgraça humana, a mulher (a partir de Eva) é também estereotipada como aquela que dá ouvidos ao Diabo, tendo, portanto, propensão a ser enganada por ele e a seguir seus desígnios e ardis. Esse estereótipo perseguiu as mulheres principalmente durante a Inquisição, onde o nascer mulher já era um pressuposto para uma acusação de pactos demoníacos sob a forma de bruxaria ou feitiçaria.
Maria:
Em Maria temos a mãe do Salvador da humanidade. Ela é a responsável por trazer ao mundo o Deus encarnado, e tão miraculosa quanto a encarnação divina é a forma como ela acontece, pois Maria engravida do Espírito Santo ainda sendo virgem. Tal qual o Deus, que é Deus e homem, Maria é ao mesmo tempo mãe e virgem.
É interessante essa atribuição dada a Maria, pois mesmo com o parto e com o casamento com José ela permanece sempre virgem nas pregações e no imaginário cristão. Maria reúne, portanto, atribuições que remetem a mulher cristã perfeita: aquela sempre casta sexualmente, pois de virgem e pura passa à maternidade sem conjunção carnal, e depois de mãe torna-se assexuada, como todas as mães são ou deveriam ser no imaginário ocidental.
Para Eva, a maternidade foi um castigo para o pecado, pois com ela vieram as dores e o sofrimento. Mas é através do castigo de Eva que vem a honra à Maria e a remissão não só a humanidade como a todas as mulheres. Como coloca Jacques Le Goff (LE GOFF, 2005: p. 285):
Quando no Cristianismo há a promoção da mulher – somos levados a reconhecer no culto da Virgem, triunfante nos séculos 12 e 13, uma mudança de rumo da espiritualidade cristã, que passa a sublinhar a redenção da mulher pecadora por Maria, a Nova Eva (...).
Assim, Maria ocupa o posto de mãe simbólica da humanidade, que pela lógica deveria ser de Eva, remediando através “do fruto de seu ventre” o desastre que a outra havia cometido. Maria também passa a ser símbolo do catolicismo, e é até hoje ícone dos católicos perante os outros cristãos, através de sua imagem, suas orações e a devoção que a Igreja presta a mãe de Cristo.
É importante ressaltar que, dentro de uma sociedade visivelmente machista e de pensamento masculinizado que é a ocidental, fruto das misoginias judaica e ateniense, a maternidade e a geração da prole foram o ápice da vida feminina durante séculos, onde os prazeres sexuais das mulheres, sempre tolhidos, deviam estar associados com a possibilidade de procriação.
Vale salientar que o modelo feminino de Maria é complementar ao de Eva no sentido da maternidade, pois Eva é o exemplo de boa esposa: companheira, submissa, que fica ao lado do marido; e Maria é por excelência o modelo de mãe ideal, sendo o casamento e a geração de prole idéias subseqüentes.
Apesar de toda valorização de Maria em oposição ao pecado de Eva há na imagem das duas algumas semelhanças, pois ambas só podem ser percebidas e são diretamente associadas às figuras masculinas que lhe acompanham, Adão e Cristo. Nesse sentido, há a dependência da imagem masculina para complementar o papel feminino nas duas personagens, pois Maria só é Maria pelo fato de ser mãe de Cristo, e Eva só veio a existir pelas necessidades de Adão. Quando se pensa em Maria há a associação imediata dela com seu papel de mãe de Jesus, e quando se pensa em Eva, ela é inseparável de seu companheiro Adão, no binário Adão e Eva, com exceção do momento da tentação e do pecado, onde parece que Eva foi a única culpada pelo pecado original.
Além disso, Maria e Eva coincidem em mais um aspecto: o sofrimento. Para Eva são as dores de parto, para Maria as dores de ver o próprio filho no caminho para o Calvário. Estas imagens nos trazem um modelo do feminino que só se realiza na maternidade, a qual sempre lhe traz sofrimentos, desde o parto e continuamente nas preocupações maternas e, supostamente, instintivas da mãe para com o filho, a querer poupar-lhe sempre e em sofrer com os seus sofrimentos, como se fosse um castigo divino.
Lilith:
Se Eva nega sua ambição e seu desejo de ser igual a Deus, conformando-se em ser dominada por seu marido, arquétipo perfeito da mulher desastrada e submissa; e Maria nega sua sexualidade, sendo mãe e virgem, arquétipo materno; Lilith, por sua vez assume desde sua criação suas convicções, ambições e sua sexualidade, sendo, por isso, até mesmo aquela mulher que assusta, domina e pode destruir.
Segundo descrições das escrituras hebraicas (Torah e Midrash), Lilith se apresentou a Adão coberta de sangue e saliva, o que para a psicóloga Cátia Rodrigues representa o seguinte (RODRIGUES, 2007: p. 05):
O sangue mencionado na citação acima sugere a menstruação, uma característica carnal e instintiva da mulher, além da ausência de pudor e tabus de Lilith, que apresenta-se livremente ao homem, disposta também à experiência sexual no ciclo menstrual. A saliva reforça o caráter sexual simbólico, remetendo a uma idéia de secreções eróticas. Deste modo, fica evidente a condição sensual e libertada dos preconceitos dentro do universo simbólico feminino em Lilith; é essa atuação sexual, que leva o homem ao êxtase e fora do controle sobre si mesmo, o que amedronta o universo simbólico masculino expressado em Adão: por isto, ele se afasta e busca uma companheira adequada - ou seja, submissa, obediente, que sinta-se inferior.
Na última frase de Rodrigues acima citada poderia ler-se: que sinta-se inferior por causa de seu próprio corpo, pois é desse modo que a mulher é educada tradicionalmente, a tolher sua sexualidade e envergonhar-se dela.
De todo modo, Lilith seria um arquétipo feminino de independência e sensualidade. Representaria a mulher que não se envergonha de si própria, mas ao contrário, tem orgulho de ser mulher, e expressa esse orgulho através de sua sexualidade. Lilith também demonstra esse orgulho ao não permitir-se viver em submissão a Adão, deixando para trás o paraíso para ter, por opção, uma vida livre e fora da sombra masculina, pagando por isso a pena de se tornar um demônio. É o oposto, portanto, ao modelo de mulher tolhida, submissa, arrependida, e que só tem sua identidade ligada a uma figura masculina.
Nas palavras de Eduardo Fonseca, “Lilith é a figura da mulher insubmissa, intelectual, vigente, guerreira e fêmea em todos os sentidos, porém, clitorianamente ativa.” (FONSECA, 2007). Nesse último aspecto Lilith passa obviamente para o pólo oposto ao de Maria, pois sua sexualidade latente não corresponde à figura estereotipada que as sociedades ocidentais, em geral, têm das mães.
Segundo os psicólogos Antônio Gomes e Vanessa Almeida (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 16):
As conseqüências da repressão da sexualidade de Lilith são entre outras a dissociação entre a maternidade e a sexualidade, o duplo padrão de moral e o controle da sexualidade masculina.
Tal dissociação criou a figura da esposa dissociada da imagem da mulher, o que significa que o homem ocidental não consegue identificar a esposa e a amante numa mesma mulher, recorrendo ao duplo padrão de moral para realizar seus desejos sexuais. O que se observa frequentemente é que ele mantém a esposa em casa para lhe dar filhos e a amante para lhe dar prazer. Este padrão vem sendo quebrado pelas mulheres que não mais aceitam esta condição de mulher incompleta que as coloca numa condição humilhante perante Deus e o homem.
Nesse sentido, nos mitos temos Eva como boa esposa, que embora falha, reconhece seu erro e permanece ao lado de seu marido (mesmo ele não a tendo defendido, mas acusado perante Deus); e Lilith, que desde o início desperta singular desejo no homem, mas que ele não pode ter, pois para isso teria que destituir-se da sua posição superior a ela. Assim, Lilith representa a mulher perigosa, indomável e sensual, a qual o homem não pode possuir oficialmente, pois isto lhe custaria uma relação de extrema igualdade no casamento, uma representação social com a mesma notoriedade daquela que o acompanha.
Ainda sobre a relação Adão – Lilith, os psicólogos escrevem (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 11):
Segundo o mito, as relações entre Adão e Lilith foram marcadas pela emergência, pela paixão capaz de dominar Adão e fazê-lo perder a razão e entregar-se a luxuria. Acredita-se que a sedução produzida por ela o fazia afastar-se de seus compromissos com a divindade.
e (RODRIGUES, 2007: p. 18):
Lilith está por trás dos fenômenos histéricos, a partir da repressão da sexualidade, que origina somatizações e enfermidades. É ela a responsável pela desunião da família, seja projetada em uma amante sedutora que ‘tira’ e ‘rouba’ o marido da esposa, seja projetada na rebeldia da esposa que não suporta o “não” de seu marido-Adão.
Certamente, no fator citado acima está mais um dos que tornam a figura de Lilith perigosa, ela seria o tipo de mulher capaz de dominar o homem e fazê-lo esquecer de suas responsabilidades, levando o fim das relações – com o divino e com o próximo.
Porém, para além da questão sexual, que desencadeia muitas outras lendas e interpretações a respeito de Lilith, como a que coloca que ela seria um demônio que povoava os sonhos dos homens israelitas, tornando-os eróticos (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 11), sendo, assim, o primeiro súcubo, ou a mãe dos súcubos; Lilith pode ser considerada um exemplo de coragem do espírito feminino ao não se submeter, ao desafiar o homem e o divino em busca de suas convicções.
Lilith teria tido um castigo a altura de suas afrontas no ponto de vista da misoginia judaica, pois o preço por sua rebeldia foi tornar-se um demônio. Lilith fora criada como mulher, mas a nova condição a impedia de um convívio com a humanidade, e de acordo com a punição onde mulher e serpente seriam para sempre inimigas, Lilith e seu arquétipo tornaram-se drasticamente opostos e até mesmo rivais de Eva e o modelo de mulher que ela sugere. Nesse ponto temos ainda a já referida dicotomia entre a esposa e a amante, presente no imaginário.
Outro aspecto é a referência demoníaca de Lilith, pois se Eva é aquela mulher que cede aos assédios do demônio, Lilith é o próprio demônio. Sendo representada durante séculos na literatura como a mãe dos súcubos, a esposa de Satanás, a Lua Negra, a bruxa que mata criancinhas, e etc., sendo mencionada também no cinema e em famosas séries de televisão com os mesmos atributos. O mito de Lilith reforçou, nesse ponto, o preconceito contra as mulheres que eclodiu principalmente durante as Inquisições medieval e moderna, onde milhares foram queimadas sob a acusação de bruxaria, principalmente aquelas que explicitavam sua sexualidade e sua força, tornando-se um incomodo social.
Nesse sentido, reforça-se a idéia de que a mulher que detém poder é geralmente perversa e, ao contrário, a docilidade e a bondade, são atributos associados à submissão feminina, à passividade em aceitar imposições. Temos exemplos históricos de mulheres cujo poder, sabedoria e astúcia foram ligados a uma suposta crueldade, como Cleópatra, Agripina, Messalina e Catarina de Médici, entre outras.
Considerações Finais:
De modo geral, o que mais chama atenção em Lilith é sua personalidade ativa e independente, sua coragem e autoconfiança, que são indubitavelmente aspectos inspiradores para qualquer mulher da contemporaneidade.
Por outro lado, os padrões socialmente instituídos de casamento e maternidade, para os quais também foi inventado que a mulher se destina, se espelham na docilidade e companheirismo de Eva e no amor incondicional de Maria, que no imaginário católico se estende de Cristo para toda a humanidade, de modo que estes são modelos de feminino ainda válidos e importantes para o papel da mulher na sociedade.
Fica, portanto, a questão: poderiam os três arquétipos coexistir numa mesma mulher, ou fazerem parte de um mesmo ideal de feminilidade? Uma visão mais conservadora diria que não. Diria que uma mulher independente, que desejasse espaços de expressão própria fora da sombra masculina teria pouquíssimas possibilidades de sucesso no casamento e na maternidade, e que, do mesmo modo, uma mulher casada e mãe deveria ter a sexualidade inibida e se dedicar quase com total exclusividade ao papel materno.
Porém, os espaços que a mulher tem ocupado nas ultimas décadas provam o contrário. Uma jornada tripla, de profissional, mãe e esposa tem sido a rotina de muitas mulheres, que apesar de alguns entraves conseguem conciliar bem a independência – social, financeira, cultural, etc. – com os papéis de mãe e esposa.
É importante ressaltar que estes arquétipos femininos, que a tradição colocou como opostos entre si, onde a mulher livre e independente foi, por muitas vezes e em muitas sociedades, estigmatizada e marginalizada, tida como incapaz de ser mãe; podem guardar dentro dos mitos (e/ou histórias) que as originam um mesmo principio materno. Pois, Lilith, como a primeira mulher de Adão poderia ser a mãe de uma humanidade mais liberal, menos hipócrita e complexada, e de fato foi “mãe” e mentora de muitos homens e mulheres, a começar pela própria Eva.
Lilith, aliando aspectos do modelo de Eva e Maria, representa esta mulher livre, inteligente, forte e disposta a enfrentar preconceitos e adversidades, a qual tem mostrado uma influência cada vez maior na sociedade, dentro da política, da economia, das artes e da ciência, ocupando espaços antes exclusivamente masculinos, conquistando aos poucos a dita igualdade que tantos atritos gerou no Éden.
Assim, concluímos este texto com a acertada afirmação de Antonio Gomes e Vanessa Almeida sobre a primeira mulher da face da terra (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 18):
Em linhas gerais isto quer dizer que ela representa o oposto das características que foram culturalmente atribuídas como obrigações femininas. Lilith representa, portanto, a rebeldia contra a passividade, à submissão e a obediência. O repúdio à tradição patriarcal de dominação do homem sobre a mulher; a luta pela igualdade de condições e direitos e principalmente o desenvolvimento de ações seguras e assertivas diante de seus ideais.
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BIBLIOGRAFIA:
BIBLIA SAGRADA. Edição Revista e Corrigida. Trad.: João Ferreira de Almeida. King’s Cross Publicações, 2007.
FONSECA, Eduardo. Lilith ou Liliath. In: http://www.yorubana.com.br/textos/lilith.asp, 2007. Acessado em 29/01/2010, às 15: 50 h.
GOMES, Antonio Maspoli de Araújo. & ALMEIDA, Vanessa Ponstinnicoff de. O Mito de Lilith e a Integração do Feminino na Sociedade Contemporânea. In: Âncora – Revista digital de estudos em religião. Ano II, Vol. II, Junho 2007.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. São Paulo: EDUSP, 2005.
_______________. Uma longa Idade Média. Trad.: Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. São Paulo: EDUSC, 2002.
RODRIGUES, Cátia Cilene Lima. Lilith e o arquétipo do feminino contemporâneo. In: Ética, religião e expressão artística. Anais do III Congresso Internacional de Ética e Cidadania. 2007.
Na Bíblia, os principais arquétipos femininos são o de Eva, a mulher que trouxe o pecado para a humanidade; e o de Maria, a mulher que trouxe ao mundo aquele que salvaria todos os homens do pecado. Porém, há na mitologia semita, uma terceira mulher cuja trajetória está diretamente ligada à do destino da humanidade: Lilith, a primeira esposa de Adão, a serpente que enganou Eva, o demônio da luxúria.
Existem algumas versões diferentes da lenda de Lilith, na mais aceita pelos estudiosos do mito e com fundamentos na Talmud (um dos livros considerados como fonte da sabedoria rabínica), Lilith é criada por Deus da mesma forma como Adão, ou seja, moldada pelas mãos divinas, só que a partir de lodo e fezes. Os dois são o primeiro casal, responsáveis por cuidar do Éden. Só que com o tempo Lilith se rebela por não se conformar em estar em uma posição inferior a de seu marido, já que ambos foram criados a imagem e semelhança de Deus. A submissão é detectada inclusive sexualmente, onde Lilith exerce poder de sedução e entorpecimento orgástico em Adão e ele, por outro lado, se deita continuamente sobre ela, num sinal de domínio no coito e na relação, o que Lilith não aceita (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 11).
Em busca de igualdade, Lilith entra em conflito com seu marido, contesta sua posição de inferioridade, e contesta também o criador, tendo que escolher entre se submeter ou deixar o jardim. Ela escolhe a segunda opção e parte para um exílio no Mar Vermelho, reduto de demônios. Durante algum tempo Lilith se vê impelida por anjos a voltar ao jardim, porém escolhe viver como demônio e abandona de vez Adão (RODRIGUES, 2007: p. 07). Este, triste por perder sua mulher, adormece, e a partir de sua costela Deus cria Eva, uma mulher que saiu do homem, portanto dependente e submissa a ele, a que seria oficialmente a primeira esposa de Adão, a mãe da humanidade.
Após seu exilo no Mar Vermelho Lilith volta ao Jardim do Éden como um demônio, e na forma de uma serpente é responsável pela tentação de Eva, que levou toda a humanidade ao pecado. Com astúcia, Lilith confunde Eva e desperta nela o desejo de igualdade, não a igualdade com o homem, que a primeira mulher antes desejava, mas a igualdade com o próprio Deus (FONSECA, 2007).
Na Bíblia, não temos nenhuma referência à Lilith, e a serpente é identificada com o Diabo, mas no imaginário judaico, já associado às lendas mesopotâmicas, Lilith é o demônio da luxúria (NOGUEIRA, 2002: p. 17) – que tentava os jovens sexualmente á noite levando-os a sonhos eróticos e “poluição noturna”-, e mais tarde, com a maior sistematização das crenças de Israel, a lenda foi acoplada à idéia do Diabo e suas hostes. Por outro lado, o mito de Lilith, presente originalmente na cultura dos babilônicos e assírios, perdurou também na tradição oral dos hebreus e nos livros de sabedoria, considerados apócrifos pela cultura cristã. Além disso, a lenda tem sido retomada pelo estudo das religiões, religiões e mitologias comparadas, psicologia e pela astrologia e misticismo, onde Lilith é a lua negra, a face oculta lunar.
Desse modo, pretendemos analisar os três arquétipos femininos que aqui propomos: o de Eva, o de Maria, e o exposto acima, o de Lilith.
Figura 1: O pecado original e a expulsão do Paraíso. – Michelangelo, séc. XVI. (Capela Sistina)
Eva:
Eva é, segundo a Bíblia, a primeira esposa de Adão. De acordo com este livro sagrado, depois que todas as coisas já haviam sido criadas, Deus a fizera de uma costela do homem para ser a companheira deste, pois todos os outros animais tinham um par, menos o ser humano. Adão nomeou-lhe, como tinha feito com o resto da criação. (Gênesis, cap. I e II)
Ela é também a responsável pelo pecado original, pois sucumbiu aos apelos da serpente e comeu do fruto proibido por Deus, desobedecendo às ordens divinas. Além disso, convenceu Adão a também desobedecer a Deus e comer do fruto da “árvore do conhecimento do bem e do mal”, o que levou toda a raça humana à perdição.
Segundo o que expõe Jacques Le Goff, dentre as interpretações que podem ser feitas dos primeiros capítulos de Gênesis, temos a de que Eva foi uma criação imperfeita até ser nomeada por Adão, e a de que a existência dela, e da mulher, só acontece em razão das necessidades de Adão, ou seja, Deus só a criou quando percebeu que o homem estava só e precisava de uma companheira (LE GOFF, 2008: 121). Daí podemos colocar que Eva só poderia ter sua identidade e existência ligadas a de Adão.
São Tomás de Aquino, um dos maiores teóricos do catolicismo, viu no fato de Deus ter criado Eva a partir da costela de Adão um indício de igualdade entre homem e mulher, pois, segundo ele, se Eva fosse criada da cabeça seria uma indicação de superioridade, e se fosse criada do pé, uma indicação de inferioridade (LE GOFF, 2008: 122). Por outro lado, esse também pode ser um indicativo de profunda ligação e até mesmo dependência entre os dois, principalmente de Eva em relação a Adão, de quem foi gerada, o que transferido para o imaginário pode implicar na idéia de dependência das mulheres para com os homens.
Quando Eva foi tentada pela serpente a Bíblia não revela explicitamente se ela estava sozinha ou em companhia de Adão, porém a não interferência dele no diálogo entre ela e a serpente faz parecer que ambas estavam sozinhas. Eva é tentada a ser como Deus, conhecedora do bem e do mal, caso comesse do fruto da árvore do conhecimento, além disso, não enfrentaria a pena instituída por Deus para a desobediência, a morte. Após analisar o fruto, a mulher decide comê-lo e o oferece a seu marido, que também come. Imediatamente ambos percebem que estão nus e se escondem ao ouvir a voz de Deus (Gênesis, cap. III).
É importante notar que quando Deus pergunta sobre a desobediência, Adão culpa Eva e esta culpa a serpente. Os três são penalizados, a serpente – que segundo lendas tinha asas – rastejaria para sempre; o homem teria que trabalhar para se sustentar; a mulher e a serpente seriam inimigas; a mulher teria dores de parto e seria dominada pelo marido; e por fim a humanidade estava banida do Paraíso. Há ainda a menção do filho da mulher que esmagaria a cabeça da serpente, o que para alguns teólogos faz referência à Cristo e Satanás (Gênesis, cap. III).
Eva é então a culpada pelo pecado original, o que, no imaginário, se dissemina para todas as mulheres. É interessante que Eva, apesar de transgressora, fica ao lado de Adão para ouvir sua sentença, e a cumpri, carregando o estigma de pecado, impureza, fragilidade, ingenuidade e sofrimento remidor que se estende para as mulheres na sociedade cristã, como algo inerente a sua natureza. Lilith, por sua vez, escolhe viver sozinha e errante, e como mulher não recebe o castigo da maternidade, ou a maternidade como um castigo, no sentido das dores de parto e do sofrimento, como logo veremos com Maria.
Assim, além de culpada pela desgraça humana, a mulher (a partir de Eva) é também estereotipada como aquela que dá ouvidos ao Diabo, tendo, portanto, propensão a ser enganada por ele e a seguir seus desígnios e ardis. Esse estereótipo perseguiu as mulheres principalmente durante a Inquisição, onde o nascer mulher já era um pressuposto para uma acusação de pactos demoníacos sob a forma de bruxaria ou feitiçaria.
Maria:
Em Maria temos a mãe do Salvador da humanidade. Ela é a responsável por trazer ao mundo o Deus encarnado, e tão miraculosa quanto a encarnação divina é a forma como ela acontece, pois Maria engravida do Espírito Santo ainda sendo virgem. Tal qual o Deus, que é Deus e homem, Maria é ao mesmo tempo mãe e virgem.
É interessante essa atribuição dada a Maria, pois mesmo com o parto e com o casamento com José ela permanece sempre virgem nas pregações e no imaginário cristão. Maria reúne, portanto, atribuições que remetem a mulher cristã perfeita: aquela sempre casta sexualmente, pois de virgem e pura passa à maternidade sem conjunção carnal, e depois de mãe torna-se assexuada, como todas as mães são ou deveriam ser no imaginário ocidental.
Para Eva, a maternidade foi um castigo para o pecado, pois com ela vieram as dores e o sofrimento. Mas é através do castigo de Eva que vem a honra à Maria e a remissão não só a humanidade como a todas as mulheres. Como coloca Jacques Le Goff (LE GOFF, 2005: p. 285):
Quando no Cristianismo há a promoção da mulher – somos levados a reconhecer no culto da Virgem, triunfante nos séculos 12 e 13, uma mudança de rumo da espiritualidade cristã, que passa a sublinhar a redenção da mulher pecadora por Maria, a Nova Eva (...).
Assim, Maria ocupa o posto de mãe simbólica da humanidade, que pela lógica deveria ser de Eva, remediando através “do fruto de seu ventre” o desastre que a outra havia cometido. Maria também passa a ser símbolo do catolicismo, e é até hoje ícone dos católicos perante os outros cristãos, através de sua imagem, suas orações e a devoção que a Igreja presta a mãe de Cristo.
É importante ressaltar que, dentro de uma sociedade visivelmente machista e de pensamento masculinizado que é a ocidental, fruto das misoginias judaica e ateniense, a maternidade e a geração da prole foram o ápice da vida feminina durante séculos, onde os prazeres sexuais das mulheres, sempre tolhidos, deviam estar associados com a possibilidade de procriação.
Vale salientar que o modelo feminino de Maria é complementar ao de Eva no sentido da maternidade, pois Eva é o exemplo de boa esposa: companheira, submissa, que fica ao lado do marido; e Maria é por excelência o modelo de mãe ideal, sendo o casamento e a geração de prole idéias subseqüentes.
Apesar de toda valorização de Maria em oposição ao pecado de Eva há na imagem das duas algumas semelhanças, pois ambas só podem ser percebidas e são diretamente associadas às figuras masculinas que lhe acompanham, Adão e Cristo. Nesse sentido, há a dependência da imagem masculina para complementar o papel feminino nas duas personagens, pois Maria só é Maria pelo fato de ser mãe de Cristo, e Eva só veio a existir pelas necessidades de Adão. Quando se pensa em Maria há a associação imediata dela com seu papel de mãe de Jesus, e quando se pensa em Eva, ela é inseparável de seu companheiro Adão, no binário Adão e Eva, com exceção do momento da tentação e do pecado, onde parece que Eva foi a única culpada pelo pecado original.
Além disso, Maria e Eva coincidem em mais um aspecto: o sofrimento. Para Eva são as dores de parto, para Maria as dores de ver o próprio filho no caminho para o Calvário. Estas imagens nos trazem um modelo do feminino que só se realiza na maternidade, a qual sempre lhe traz sofrimentos, desde o parto e continuamente nas preocupações maternas e, supostamente, instintivas da mãe para com o filho, a querer poupar-lhe sempre e em sofrer com os seus sofrimentos, como se fosse um castigo divino.
Lilith:
Se Eva nega sua ambição e seu desejo de ser igual a Deus, conformando-se em ser dominada por seu marido, arquétipo perfeito da mulher desastrada e submissa; e Maria nega sua sexualidade, sendo mãe e virgem, arquétipo materno; Lilith, por sua vez assume desde sua criação suas convicções, ambições e sua sexualidade, sendo, por isso, até mesmo aquela mulher que assusta, domina e pode destruir.
Segundo descrições das escrituras hebraicas (Torah e Midrash), Lilith se apresentou a Adão coberta de sangue e saliva, o que para a psicóloga Cátia Rodrigues representa o seguinte (RODRIGUES, 2007: p. 05):
O sangue mencionado na citação acima sugere a menstruação, uma característica carnal e instintiva da mulher, além da ausência de pudor e tabus de Lilith, que apresenta-se livremente ao homem, disposta também à experiência sexual no ciclo menstrual. A saliva reforça o caráter sexual simbólico, remetendo a uma idéia de secreções eróticas. Deste modo, fica evidente a condição sensual e libertada dos preconceitos dentro do universo simbólico feminino em Lilith; é essa atuação sexual, que leva o homem ao êxtase e fora do controle sobre si mesmo, o que amedronta o universo simbólico masculino expressado em Adão: por isto, ele se afasta e busca uma companheira adequada - ou seja, submissa, obediente, que sinta-se inferior.
Na última frase de Rodrigues acima citada poderia ler-se: que sinta-se inferior por causa de seu próprio corpo, pois é desse modo que a mulher é educada tradicionalmente, a tolher sua sexualidade e envergonhar-se dela.
De todo modo, Lilith seria um arquétipo feminino de independência e sensualidade. Representaria a mulher que não se envergonha de si própria, mas ao contrário, tem orgulho de ser mulher, e expressa esse orgulho através de sua sexualidade. Lilith também demonstra esse orgulho ao não permitir-se viver em submissão a Adão, deixando para trás o paraíso para ter, por opção, uma vida livre e fora da sombra masculina, pagando por isso a pena de se tornar um demônio. É o oposto, portanto, ao modelo de mulher tolhida, submissa, arrependida, e que só tem sua identidade ligada a uma figura masculina.
Nas palavras de Eduardo Fonseca, “Lilith é a figura da mulher insubmissa, intelectual, vigente, guerreira e fêmea em todos os sentidos, porém, clitorianamente ativa.” (FONSECA, 2007). Nesse último aspecto Lilith passa obviamente para o pólo oposto ao de Maria, pois sua sexualidade latente não corresponde à figura estereotipada que as sociedades ocidentais, em geral, têm das mães.
Segundo os psicólogos Antônio Gomes e Vanessa Almeida (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 16):
As conseqüências da repressão da sexualidade de Lilith são entre outras a dissociação entre a maternidade e a sexualidade, o duplo padrão de moral e o controle da sexualidade masculina.
Tal dissociação criou a figura da esposa dissociada da imagem da mulher, o que significa que o homem ocidental não consegue identificar a esposa e a amante numa mesma mulher, recorrendo ao duplo padrão de moral para realizar seus desejos sexuais. O que se observa frequentemente é que ele mantém a esposa em casa para lhe dar filhos e a amante para lhe dar prazer. Este padrão vem sendo quebrado pelas mulheres que não mais aceitam esta condição de mulher incompleta que as coloca numa condição humilhante perante Deus e o homem.
Nesse sentido, nos mitos temos Eva como boa esposa, que embora falha, reconhece seu erro e permanece ao lado de seu marido (mesmo ele não a tendo defendido, mas acusado perante Deus); e Lilith, que desde o início desperta singular desejo no homem, mas que ele não pode ter, pois para isso teria que destituir-se da sua posição superior a ela. Assim, Lilith representa a mulher perigosa, indomável e sensual, a qual o homem não pode possuir oficialmente, pois isto lhe custaria uma relação de extrema igualdade no casamento, uma representação social com a mesma notoriedade daquela que o acompanha.
Ainda sobre a relação Adão – Lilith, os psicólogos escrevem (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 11):
Segundo o mito, as relações entre Adão e Lilith foram marcadas pela emergência, pela paixão capaz de dominar Adão e fazê-lo perder a razão e entregar-se a luxuria. Acredita-se que a sedução produzida por ela o fazia afastar-se de seus compromissos com a divindade.
e (RODRIGUES, 2007: p. 18):
Lilith está por trás dos fenômenos histéricos, a partir da repressão da sexualidade, que origina somatizações e enfermidades. É ela a responsável pela desunião da família, seja projetada em uma amante sedutora que ‘tira’ e ‘rouba’ o marido da esposa, seja projetada na rebeldia da esposa que não suporta o “não” de seu marido-Adão.
Certamente, no fator citado acima está mais um dos que tornam a figura de Lilith perigosa, ela seria o tipo de mulher capaz de dominar o homem e fazê-lo esquecer de suas responsabilidades, levando o fim das relações – com o divino e com o próximo.
Porém, para além da questão sexual, que desencadeia muitas outras lendas e interpretações a respeito de Lilith, como a que coloca que ela seria um demônio que povoava os sonhos dos homens israelitas, tornando-os eróticos (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 11), sendo, assim, o primeiro súcubo, ou a mãe dos súcubos; Lilith pode ser considerada um exemplo de coragem do espírito feminino ao não se submeter, ao desafiar o homem e o divino em busca de suas convicções.
Lilith teria tido um castigo a altura de suas afrontas no ponto de vista da misoginia judaica, pois o preço por sua rebeldia foi tornar-se um demônio. Lilith fora criada como mulher, mas a nova condição a impedia de um convívio com a humanidade, e de acordo com a punição onde mulher e serpente seriam para sempre inimigas, Lilith e seu arquétipo tornaram-se drasticamente opostos e até mesmo rivais de Eva e o modelo de mulher que ela sugere. Nesse ponto temos ainda a já referida dicotomia entre a esposa e a amante, presente no imaginário.
Outro aspecto é a referência demoníaca de Lilith, pois se Eva é aquela mulher que cede aos assédios do demônio, Lilith é o próprio demônio. Sendo representada durante séculos na literatura como a mãe dos súcubos, a esposa de Satanás, a Lua Negra, a bruxa que mata criancinhas, e etc., sendo mencionada também no cinema e em famosas séries de televisão com os mesmos atributos. O mito de Lilith reforçou, nesse ponto, o preconceito contra as mulheres que eclodiu principalmente durante as Inquisições medieval e moderna, onde milhares foram queimadas sob a acusação de bruxaria, principalmente aquelas que explicitavam sua sexualidade e sua força, tornando-se um incomodo social.
Nesse sentido, reforça-se a idéia de que a mulher que detém poder é geralmente perversa e, ao contrário, a docilidade e a bondade, são atributos associados à submissão feminina, à passividade em aceitar imposições. Temos exemplos históricos de mulheres cujo poder, sabedoria e astúcia foram ligados a uma suposta crueldade, como Cleópatra, Agripina, Messalina e Catarina de Médici, entre outras.
Considerações Finais:
De modo geral, o que mais chama atenção em Lilith é sua personalidade ativa e independente, sua coragem e autoconfiança, que são indubitavelmente aspectos inspiradores para qualquer mulher da contemporaneidade.
Por outro lado, os padrões socialmente instituídos de casamento e maternidade, para os quais também foi inventado que a mulher se destina, se espelham na docilidade e companheirismo de Eva e no amor incondicional de Maria, que no imaginário católico se estende de Cristo para toda a humanidade, de modo que estes são modelos de feminino ainda válidos e importantes para o papel da mulher na sociedade.
Fica, portanto, a questão: poderiam os três arquétipos coexistir numa mesma mulher, ou fazerem parte de um mesmo ideal de feminilidade? Uma visão mais conservadora diria que não. Diria que uma mulher independente, que desejasse espaços de expressão própria fora da sombra masculina teria pouquíssimas possibilidades de sucesso no casamento e na maternidade, e que, do mesmo modo, uma mulher casada e mãe deveria ter a sexualidade inibida e se dedicar quase com total exclusividade ao papel materno.
Porém, os espaços que a mulher tem ocupado nas ultimas décadas provam o contrário. Uma jornada tripla, de profissional, mãe e esposa tem sido a rotina de muitas mulheres, que apesar de alguns entraves conseguem conciliar bem a independência – social, financeira, cultural, etc. – com os papéis de mãe e esposa.
É importante ressaltar que estes arquétipos femininos, que a tradição colocou como opostos entre si, onde a mulher livre e independente foi, por muitas vezes e em muitas sociedades, estigmatizada e marginalizada, tida como incapaz de ser mãe; podem guardar dentro dos mitos (e/ou histórias) que as originam um mesmo principio materno. Pois, Lilith, como a primeira mulher de Adão poderia ser a mãe de uma humanidade mais liberal, menos hipócrita e complexada, e de fato foi “mãe” e mentora de muitos homens e mulheres, a começar pela própria Eva.
Lilith, aliando aspectos do modelo de Eva e Maria, representa esta mulher livre, inteligente, forte e disposta a enfrentar preconceitos e adversidades, a qual tem mostrado uma influência cada vez maior na sociedade, dentro da política, da economia, das artes e da ciência, ocupando espaços antes exclusivamente masculinos, conquistando aos poucos a dita igualdade que tantos atritos gerou no Éden.
Assim, concluímos este texto com a acertada afirmação de Antonio Gomes e Vanessa Almeida sobre a primeira mulher da face da terra (GOMES & ALMEIDA, 2007: p. 18):
Em linhas gerais isto quer dizer que ela representa o oposto das características que foram culturalmente atribuídas como obrigações femininas. Lilith representa, portanto, a rebeldia contra a passividade, à submissão e a obediência. O repúdio à tradição patriarcal de dominação do homem sobre a mulher; a luta pela igualdade de condições e direitos e principalmente o desenvolvimento de ações seguras e assertivas diante de seus ideais.
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BIBLIOGRAFIA:
BIBLIA SAGRADA. Edição Revista e Corrigida. Trad.: João Ferreira de Almeida. King’s Cross Publicações, 2007.
FONSECA, Eduardo. Lilith ou Liliath. In: http://www.yorubana.com.br/textos/lilith.asp, 2007. Acessado em 29/01/2010, às 15: 50 h.
GOMES, Antonio Maspoli de Araújo. & ALMEIDA, Vanessa Ponstinnicoff de. O Mito de Lilith e a Integração do Feminino na Sociedade Contemporânea. In: Âncora – Revista digital de estudos em religião. Ano II, Vol. II, Junho 2007.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. São Paulo: EDUSP, 2005.
_______________. Uma longa Idade Média. Trad.: Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. São Paulo: EDUSC, 2002.
RODRIGUES, Cátia Cilene Lima. Lilith e o arquétipo do feminino contemporâneo. In: Ética, religião e expressão artística. Anais do III Congresso Internacional de Ética e Cidadania. 2007.
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